Mostrando postagens com marcador contos urbanos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador contos urbanos. Mostrar todas as postagens

terça-feira, junho 02, 2009

O motorista, o cobrador e os marginais








Irineu, desde criança, sempre quis ser caminhoneiro.
Talvez por influência paterna, já que seu pai havia décadas, laborava num Mercedes Benz vermelho 1113, trucado, ano 71.
Mas não o era, era motorista de coletivo na capital.
Já na idade adulta fora morar em São Paulo com a esposa em busca de oportunidades melhores e com sua carteira de motorista “classe E”, presente do pai, logo iniciaria na profissão de motorista de ônibus.
E assim foi por longo período.
Irineu acordava ainda de madrugada e iniciava sua jornada a pé até a estação metro sentido sul ao norte.
Subia em Jabaquara e descia na Armênia.
Já na garagem da empresa de viação intermunicipal tomava posse de seu veículo coletivo e partia na busca intermitente a coletar pessoas, os metropolitanos.
Irineu via por meio de suas retinas, um tanto fatigadas pelo acúmulo de labor durante anos e anos, trabalhadores, desocupados, jovens em busca de um futuro promissor, jovens sem futuro algum, mulheres gestantes, mulheres com crianças, policiais, bombeiros, atletas iniciantes, professores no inicio de carreira, professores quase a aposentar, poetas e filósofos entre outros tantos.
No dia das mães último, porém, Irineu fez o que seria seu último itinerário.
Estando a conversar com o colega cobrador, ocioso naquele momento, já que quase ninguém fazia uso do coletivo naquela ocasião, percebera a entrada intempestiva de alguns jovens completamente ensandecidos e com um objetivo fúnebre: queriam dizimar vidas e adquirir matéria, não importasse quais, desde que alheias.
Fizeram-no parar. Irineu um quase herói anônimo não se deixou intimidar e numa tentativa frustrada tentou se deslocar até um DP que ficava três quadras acima.
Percebendo a alteração de rota, foi, de súbito, covardemente agredido com uma coronhada na cabeça sem chance de defesa pelo lider delinquente.
Caiu para o lado esquerdo e seu corpo se apoiou suavemente na lata do veículo.
O cobrador, dizia em ressonante voz que deveriam ter piedade de todos e poupassem suas pobres vidas.
Num diálogo ríspido e esquizofrênico os marginais ordenaram para que todos descessem. Antonio, o cobrador não mais ocioso, tentara ainda numa última atitude, arrastar o colega para fora quando se sentiu ostensivamente interrompido por uma mão armada apontando para seu peito suado e pulsante.
Todos desceram, menos Irineu inconsciente.
O pai de três meninas que ainda estudavam o fundamental sucumbiu lentamente às chamas que incendiaram todo o carro coletivo e parte da fiação elétrica e telefônica da rua em que jazia um trabalhador anônimo; em breve, manchete televisiva e primeira página do jornal sensacionalista que correria pelas bancas no dia seguinte.
Não houve gritos, talvez dor.
Mas Irineu ficara inconsciente durante todo o período em que labaredas vermelhas e fumaça preta subiam ao céu parcialmente nublado.
Naquela manhã de outono, Século XXI a barbárie humana prevaleceu na vida daquela família, agora órfã de pai.

Um domingo diferente


Naquela manhã, Josevaldo acordou bem cedo.
Estava de plantão na terceira corporação de bombeiros situada na zona oeste.
Há quatorze anos Josevaldo trabalhava nessa corporação e fora condecorado três vezes por atos de bravura e heroísmo.
Certa vez, adentrou-se num prédio de sete andares que jazia em chamas e salvou a vida de uma senhora de setenta e quatro anos que desmaiara nas escadas enquanto fazia uma lenta descida.
Por vezes ajudou a apagar chamas ardentes que consumiam sem dó nem piedade tudo o que encontravam pela frente.
Atuou contra incêndios em supermercados, num pet-shop, numa papelaria e quase sempre diagnosticava a mesma origem dos incêndios: problemas nas fiações antigas que gerava curtos-circuitos fatais.
Josevaldo era admirado pelos colegas da corporação e tinha vários amigos fora dela.
Era lateral-esquerdo do time do bairro onde morava e por vezes atuou como técnico do time juvenil da “casa de recuperação”.
Sua marca: dava branidos estridentes que ativavam a molecada a correr e marcar. No time da corporação do terceiro batalhão de bombeiros atuava no ataque, sempre pelo lado esquerdo e, por sorte, fazia muitos gols, alguns belos, outros engraçados.
Essas atuações davam a Josevaldo um status de estrela do time.
Era badalado pelos colegas antes das partidas e após iam sempre se confraternizar num churrasquinho ali mesmo no campo da corporação.
Josevaldo era abstêmio, mas adorava picanha com coca-cola.
Tinha dois filhos, um menino de treze anos, torcedor do Corinthians; que deixava Josevaldo irritado, pois todos sabiam de sua paixão pelas cores do Palmeiras.
O filho mais novo tinha oito anos e influenciado pelo irmão dava impressão de ser corintiano também.
Josevaldo, à hora do jantar nas noites de quarta, se irritava com o mais jovem dizendo:
- Traição dupla em família é demais para mim. Já sou quarentão. Não me torne um cardiopata por desgosto.
O Palmeiras é nosso time, temos que adora-lo de todo nosso coração!
Os meninos riam e desconversavam pedindo para passar a salada ou coisa parecida.
Josevaldo tentou ensinar o hino do verdão para o caçula, mas naquela manhã de sábado quando flagrou o pivete lavando sua bicicleta e cantando a primeira estrofe do hino do timão da zona leste desistiu e voltou para a estaca zero.
- Um dia vou adotar uma criança palmeirense, pois o meu sangue não gerou torcedores para meu time. E ainda torcem para o time rival. Só sendo pai para agüentar!!!
Aquele domingo dia das mães estava ensolarado e fresco.
O céu azul com poucas nuvens dava um ar de meados de outono no país tropical.
Josevaldo presenteara sua esposa com um celular, da promoção, que comprara e saíra já uniformizado para o labor.
Despedira de seus filhos ao portão e fez o caminho de rotina percorrendo quase todo o trajeto de metrô.
Dia tranquilo, tv sintonizada no campeonato italiano em dia de rodada dupla e Josevaldo liderando uma tímida torcida para o Milan.
O comandante, só para irritar torcia abertamente para a Juventus que fazia outro jogo no mesmo horário e era exibido por flashes a cada dez minutos.
Mas há cinco minutos do final das partidas e do campeonato italiano, ouviu-se um som de motocicleta.
Freagem brusca, dois homens protegidos pelos capacetes fechados e uma saraivada de balas de metralhadora em direção ao interior da corporação.
Josevaldo que acabara de se levantar para observar o que acontecia lá fora foi alvejado por doze balas potentes.
Morreu na hora. Óbito instatâneo. Sem defesa.
Outros dois companheiros atingidos não tiveram o mesmo triste final e foram levados feridos para o hospital mais próximo do corpo de bombeiros da zona oeste de São Paulo.
Naquele dia, domingo dia das mães, Josevaldo não voltou para casa.


Outono/2008.

O Dia Que Não Passou










Em frente ao computador, aquele homem não estava com a mínima vontade de expressar coisa alguma. Nem bebericar o café que há tempos esfriara.
Queria ir ao trabalho, vender suas cartas de crédito e seus consórcios habituais de carros, motos e imóveis.
Era alto, magro, pele pálida e lábios arroxeados como se acabasse de beber algum vinho tinto barato.
Corretor de consórcios e imóveis com registro no sindicato e no conselho regional. Mas, naquele dia não saiu de casa, ou melhor, não pode faze-lo como cotidianamente fazia.
Estava ilhado em seu próprio lar.
Nenhum contato com o mundo lá fora. Tudo estava hibernado e ocioso como uma paisagem lunar.
O homem tedioso olhava através de seu monitor 17’ enquanto navegava pelo orkut em busca de comunidades exóticas e obcenas.
Pela TV o repórter de plantão dava suas mais recentes informações e dizia que mais um ônibus fora incendiado na zona sul.
As autoridades municipais e estaduais das secretarias de segurança e transportes estavam reunidas na busca de soluções imediatas, mas pediam desesperados que a população mantivesse a calma.
O homem que labutava pelos labirintos urbanos, necessitado de transporte coletivo, ônibus e metrô, estava anestesiado nas profundezas de seu quarto-escritório.
Internet e TV ligadas simultaneamente, retinas lacrimejando pelos efeitos elétricos da tela do computador e lá ia o ser a retornar a sua geladeira duplex branca para mais uma averiguação de rotina.
Fechando-a pegou uma mexerica que estava dentro da fruteira inox sobre a mesa de madeira cor tabaco. Descascou-a e inebriou-se pelo cheiro do sumo que exalava daquela fruta amarela.
Um dia nada comum, nem mesmo aos domingos aquele magro e alto homem ficava em casa matando os ponteiros de seu relógio que insistia em girar segundo a segundo como uma ciranda interminável.
Mas ele estava lá, refém de luxo no aconchego de seu apartamento financiado pelo feirão da Caixa e com cerca de mais de dezoito anos para quita-lo.
Era feliz, escrevia poesias nas horas de inspiração e estava aprendendo a tocar violão com uma professora negra dos olhos ainda mais negros que, quando o olhava lhe trazia bem estar e satisfação.
A professora, antes de tudo, era, para ele, um afrodisíaco afro-tupiniquim exótico.Pensou em pedi-la em namoro, mas relutou achando ser antiético de sua parte assediar alguém que estava ganhando seu pão de maneira artisticamente singela.
Voltou à geladeira mais uma vez e encontrou um danete gelado que pacientemente foi devorado utilizando-se de uma colherinha de café.
Esse homem adorava saborear danetes com colherinhas de café.
No Orkut encontrou a comunidade Eu Amo Os Anos 80, uma espécie de comunidade de música saudosista para aquelas pessoas que foram jovens nos idos anos 80.
Como ele mesmo dizia e digitava para amigos:
- Adoro aquela bateria sequinha, polida, o contra-baixo potente pontuando a canção e contrapondo-se a guitarra econômica e aquelas vozes melódicas e chorosas de Morrissey, Robert Smith, Peter Murphy e Ian McCullock.No momento em que finalizava seu danete ouvia concentradamente o álbum "Desintegration" do The Cure e lembrava nitidamente no dia em que adquiriu o disco vinil logo após seu lançamento. Hoje, com uma mídia em MP3 com todos os discos do The Cure comprada a oito reais de um camelô na praça dos Correios ele relembrava saudosamente como era comprar um vinil novo. Inefável, pensava.
Lembrou, ainda, sem saber porquê, de seu amigo, Mario Borges, jornalista do Diário: "A Cidade Em Chamas", que no mesmo instante, via pela internet e construia sua coluna do dia seguinte um texto às autoridades competentes na qual dizia raivosamente:
“Expresso de forma enfática todo meu desagravo em detrimento de atitudes nefastas como as que vem ocorrendo de forma sistemática com toda a população honesta e trabalhadora que é justamente quem mais sofre com a ausência de providencias eficazes por parte dos órgãos competentes no intuito de inibir e coibir manifestações marginais. É de nossa responsabilidade, juntamente com a união e o cooperativismo de toda a sociedade civil, reinvidicar soluções urgentes para podermos juntos, pleitear nosso Estado de Direito justo e trabalhando em prol do operário, do profissional liberal, do funcionário público e de todos os funcionário privados que laboram em empresas sérias e geram o crescimento de nossa nação brasileira”.
Esse sentimento de justiça não mais gerava alterações metabólicas naquele homem cansado do cotidiano, cansado de sua vida impar, de solidão nas noites serenas e de observações vagas nos balcões de bares suburbanos.
Resignado?
Talvez pretendesse fazer algo inútil ou gerar cinetismo naquele momento tranquilamente desesperador. Mas a iminência ficava no pensamento.
Voltou à geladeira, olhou-a pela última vez, foi ao quarto minúsculo, abriu sua escrivaninha e retirou um objeto negro e gélido. Única herança do pai.
Após um copo de água gelada com sal de frutas para amenizar sua companheira gastrite, a vizinha de cima, quinto andar de um prédio classe baixa decadente na Avenida Robert Kennedy, ouviu um disparo e chamou a polícia.