sábado, janeiro 29, 2011

Um novo purgatório



Os cães latem e os taxis não param
Minha ferida ainda está dolorida e a mancha de sangue escureceu
Talvez, por isso, os taxis não atendem ao meu aceno
Minha aparência não está nada agradável para essa hora da noite


Eu não busco a simpatia e nem os serviços das prostitutas
Preciso de um banho quente e uma enorme cama de hotel
Antes que eu caia de joelhos nessa calçada, preciso resistir
Não desistir e tentar tapar o buraco que aquela faca fez em minha camisa


Quando me perguntarem:
“Como é levar uma facada?”
Saberei responder...
“A lâmina é fria e na hora, não dói tanto”


Mas, depois... Arde!
Ah, como arde esse corte!
Estou cambaleando, nos muros e nas latas de lixo me apoiando
E o efeito do álcool passou há tempos, todavia, sigo vacilando


Preferia estar no meio de um tiroteio e ser atingido por um projétil de 4 mm e cair de vez
Afinal, é muito entediante ir morrendo aos poucos
Eu tenho uma dívida, um corte e um Rolex que já não me serve para nada
E, na cabeça um blues do Tom Waits


“Well, Jesus will be here
Be here soon
he's gonna cover us up with leaves
with a blanket from the moon”


Eu sei que, em breve estarei diante Dele
Sendo julgado por todos os meus pecados
Com a promessa da purificação e da benção
Desde que eu enfrente um novo purgatório


Ah meu Deus!
Já não me bastava esse purgatório terrestre
Agora, devo ir ao purgatório celestial
Encontrar velhos camaradas para um acerto final?


Não tenho mensagens, razão ou paciência
Só culpa, dúvidas e descrença
Vou deixar esse lugar, esse corpo e todas as inconveniências
Que proporcionei para mim mesmo durante toda essa vida de imprudências


E encarar um novo desafio só com a alma e a coragem.










*A Tom Waits (07/12/1949)

sábado, janeiro 22, 2011

Ed Wood foi ao cinema

"Mas isso, não era tão importante assim!"
(Nosfa #)



Seus efeitos eram um tanto “especiais”
Além de muito duvidosos
Sobre a qualidade, meu rapaz...
“Bela Lugosi's Dead”, sussuraram os orgulhosos


Num estúdio precário, baixo orçamento e cenas descontínuas
Esse método, trouxe a tona a genialidade de um diretor incomum
E convenhamos, era praxe reaproveitar materiais obsoletos de produções
anteriores
Simplesmente o pior de todos, o pior do planeta Terra dirigindo os piores atores


Mas, ser o pior não significa ter descrédito e causar repugnação
Na verdade tornou-se, postumamente, grande sensação
Sua linguagem minimalista era malfeita e grosseira
E os recursos técnicos de primeira geração


Afinal, de perfeccionismo, Ed Wood nunca fez questão
“Glen or Glenda?” em 1953, o que era mais importante?
Ausência total de temas lineares e imoralidade na tela, infames tormentos...
Momentos desconexos ou carência de sequencias cronológicas?


Nada disso, o importante eram as suas peculiaridades num "trash movie"
Recheado de infâmia grotesca e absurdos imperdoáveis
Por mais que tentem, nunca conseguirão imitar sua falta de talento
Nunca conseguirão reduzir a zero o senso crítico num único momento


Para que o absurdo atinja o ápice da experiência transcendental
Que anula qualquer possibilidade de indiferença racional
Talvez...
“Plan 9 from de Outer Space” esteja em cartaz...
... Qual de nós será capaz
De insistir em assisti-lo pela nona vez?



*Em 1994, TIM BURTON, homenageou seu ídolo com um longa-metragem que tinha Johnny Depp no papel principal.*Ed Wood: Edward Davis Wood, Jr., (10/10/1924 - 10/12/1978) foi produtor e diretor de filmes de terror, ficção científica e pornô.*Ele é considerado, pela critica especializada, o pior diretor de todos os tempos.

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Capturado por um sentimento







“O casamento não deveria ser uma prisão, mas um jardim, onde algo superior é cultivado.”
(F. Nietzsche)







Todos nós somos um espírito em formação
E nos construímos a partir de nossas escolhas
Buscando cada um, seu próprio rumo
Sabendo que não se começa a voar voando!


A águia mostra suas garras
Quando se lança ao mergulho
Ela teme águas rasas
Mas atinge o firmamento com orgulho


Não busca o conforto, só investiga o terreno
Não sou como a águia, obedeço a comandos
Não dirijo a mim mesmo
Minha propensão é para a angústia


Depois que ela, envolta em sedução
Ofereceu-me a dádiva
A dádiva da servidão
Tornei-me escravo por paixão


Quando não entorpeço entre estranhos pensamentos
Fico sem pensar em nada, só na cerimônia de casamento
Sua aflição é tendenciosa e me contagiou
Mostre-me suas presas duras, relembre-me as juras
As mesmas com as quais você me capturou



*Baseado em citações de Nietzsche.

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Tão frio como o olhar de Candy Darling




Antes da parada fulminante, pensei:
Se eu morrer agora, quem cuidará de meus quadros?
Quem apagará os meus rastros?
Quem eliminará todos os ratos?


Os mesmos ratos que, por anos
Frequentaram minha casa e cearam comigo
Tomaram meu vinho, comeram meu queijo e me abandonaram pelo caminho
Eis que, uma dor aguda tomou o meu corpo e passou...


... Morrer não é tão doloroso, afinal
E, vejo novamente os ratos que voltaram...
... Estão todos aqui me olhando e participando solenemente do meu funeral
Agora, sou um espírito


Sinto-me como tal
Leve, como um sonho livre e concluo
Que, por muito tempo fui uma realidade congelada
Como o olhar de Candy Darling naquela capa de 2005


Mas, pelo menos durante algum tempo, com afinco
Havia espaço para contestações e curiosidades
Minha vida sempre foi de questionamentos e pertinácia
Não agradar a primeira vista era minha eficácia


De pé, no cemitério, ouvindo o cantar de um único pássaro
Vejo as pessoas especializadas me enterrarem
Com certeza foram pagas para esse serviço
E, já estão totalmente acostumadas com isso


É uma manhã nublada e brilhante
Nunca tinha visto uma assim antes
E, sinto-me tão livre como a luz; vou agora...
Caminhando pela via que me conduzirá


A tão aguardada região celestial
Finalmente, agradeço a Deus, abandonei o meu corpo... 
De maneira natural e, não há mais 
Aquela velha e imunda forma carnal.


Homenagem a Antony and the Johnsons e o álbum
"I Am A Bird Now" (2005).

quarta-feira, janeiro 05, 2011

A hora do medicamento



Como me sinto?
Você me pergunta...
Como um ser humano qualquer
E sei me divertir como todo mundo



Depois que arranjei um emprego de diretor de cinema
Não consigo fazer um filme descente
Falta-me roteiro?
Ei, meus cigarros não são biscoitos, devolvam-me todos!



“Pedra que rola não cria limo”
Esse ditado, a enfermeira chefe me disse sorrindo
Não entendi... Você acha que eu moro aqui?
Vou lhe mostrar quem é louco, minha senhora, vou lhe mostrar



Sobre o roteiro... Tenho um:
“Começa com uma paisagem bucólica, uma tomada aérea sobre as montanhas
Um close na cabeça da águia
Ela olha para o firmamento...”



“... Abre suas asas; portentosa envergadura
Algo a impele e ela salta num rasante
Pelo desfiladeiro ela sobrevoa
Deixa acima, um ninho a centena de metros”



Outro close: “Uma mão segura uma grade
Um prisioneiro, entre flores, uma bíblia e mofo na parede
Ele irrompe a cela e percebe
Percebe o sorriso de seu amigo índio, percebe”



Hora do medicamento, Hora do medicamento!
Inicia-se a sinfonia, dá-se o confortante entorpecimento
A fila sempre aumenta nessa hora
Vejo Milos Forman se aproximando discretamente



Sempre chega mais um louco de roupas brancas
Ou não são tão brancas?
Somos todos loucos?
E a risada insana de Jack ecoa...



Ha, ha, ha – A personagem McMurphy acabou de chegar
Vamos conferir seus pertences...
Meias negras, algumas T-shirts, jaqueta de couro
Um relógio, uma touca, uma pulseira de ouro...



Mr. McMurphy só não encontrei sua loucura
Por acaso, esqueceu-se de colocá-la em sua mala?
Mrs. Ratched, a senhora acha que sou louco?
Vou lhe mostrar quem é o louco por aqui!



Onde está Candy?
Sozinho, aumenta-me a sensação de desconforto e isolamento
Preciso de um amigo, um cigarro... Cinco minutos de basebol na TV
A convulsão veio só depois de muitos choques na cabeça...



Engraçado, antes de vir para cá, nunca tive convulsões
Será que mamãe sempre escondeu isso de mim?
Aqui, recebi doses diárias de 15.000 watts
Ou seriam uns 12.000 volts?



Ah, não importa! Ilusões se dissipam na eletricidade
O que realmente importa é que derreteram meu cérebro
Estou quente... Veja como estou quente enfermeira chefe!
Fiquei gentil como um cãozinho, me tornei capaz de aceitar tudo e entender as regras desse lugar



Aprendi a colocar uma garrafa de vinho na boca
E não mais sugá-lo, é ela quem me chupa para dentro
Me curvo e adentro-me, lá ninguém me reconhece
Torno-me essência, a própria substância original



A substância que outrora me deixava grande e eloquente
Agora, trancafiado nesse lugar, todos me chamam de demente
Acordem, vejam todos; o anjo da noite se despede!
O meu bilhete é o meu travesseiro, aperte-o em meu rosto amigo Chefe
Depois, irrompa as grades e parta para o Canadá
Quem sabe um dia, em espírito, nos encontraremos lá?







*Homenagem a Jack Nicholson, ator em: 
“Um estranho no ninho”. 
Direção: Milos Forman (1975)

sábado, janeiro 01, 2011

Heterônimo

"Subamos, subamos acima, subamos além
Acima do além, subamos"
(Vinícius de Moraes)



Dê ao autor novos livros
Outra alma erradia, axiomas
Temas múltiplos, distinta biografia


Faculta-lhe novas linhas
Antagonismos milimétricos
Demonstrações de teorias
Desobediência, outro olhar, heresia?


Incertezas ou irresoluções
Fazem-me hesitar, me trazem mutações
Sem convenções, num reflexo
Perplexo, observo Lou James, na sala de estar


Vigio as próprias ações, lendo-o
Não obstante, preservo confusões, sendo-o
Obsesso, atormentado, expresso dúvidas, tendo-o
Encanto-me e me hesito em preocupações, vendo-o


Com tenacidade, pelo espelho, desvio o leitor
Teimosia, obscuridade e existencialismo
Num efêmero pudor, Pessoa, Brecht e Quintana
Clarice, Sartre, Kafka entre pesadelos e muita dor


Pouco claro, sem nobreza puritana
Na caneta esferográfica mapeando a perda
Anulando as evidências herméticas
Enfraquecendo a luz com destreza cética


Espectador e testemunha que não tenta agradar
Rejeito o diagnóstico incerto do Doutor
Em letras, convenço-me e não me permito doar
Volto indisposto, para o desabrigo do meu lar
Outro foco, outra encenação e um defectível paladar


Obsedo e preocupo-me com o amor
Sou coagido pela própria intenção
Domínio do espírito, cárcere por afeição?
Comigo mesmo, mas não me permito
Em habitar essa física prisão


Salve-me obreira, dê-me a privação
Senão, tornar-me-ei profano por causa dos Românticos
Ceda-me seu tempo, mostre-me suas anotações
Apresente-me a obra perfeita, afasta-me o obscurantismo
Ainda estamos no primeiro dia do ano, enfraqueça-me o cinismo


Vício que aparenta virtude e faz-nos perder em sedução
Superficial, aprendo a nutrir um sentimento que não possuo
Fingimento, falsa devoção, altruísmo artificial?
Não, nenhum deles, só fraqueza aparente
Afinal, tentei ser crente, passei a conhecer o meu ponto de inserção
Ter fé e esperança e identificar a linha tênue entre o terreno e o sobrenatural.