terça-feira, março 29, 2011

A face de Deus



Um velho espelho, no chão da aldeia vazia
Refletiu minha alma vazia
E nele, vi o meu rosto e senti o verdadeiro horror


Delirei pela febre que me consumia feito chama
Isso me fez indiferente as mazelas humanas
Fechou-me num mundo triste e de sombras


Em meio às sombras, fantasmas assombraram meus pensamentos
Fizeram-me prisioneiro, tornei-me culpado por todos os crimes que me acusaram
Mas, ainda assim, não quero morrer...


... Sim eu quero morrer!
Antes, buscarei o conhecimento
O conhecimento empírico, o conhecimento científico


O conhecimento das sagradas escrituras
Vaidade... Tudo é vaidade para quem ama o discernimento!
Vi Cristo, em madeira, crucificado e entendi o seu propósito


Está muito claro para mim agora...
... Nele não havia soberba, apenas um plano a se cumprir
Ordens do Pai, filho obediente que salvou toda a humanidade por amor


A ela, digo e penso, num turbilhão, que preciso de garantias
Deus dê-me garantias!
É tão difícil conceber-lhe; afinal, vós não sois matéria física


Feito a sua imagem e semelhança tornei-me cavaleiro
Lutei, venci e perdi batalhas por um rei físico, efêmero e vaidoso
Eu vi a morte em minha frente, a tive em minhas mãos


Todavia, o sobrenatural me fez contestar os sacros ensinamentos
E as promessas se perderam na neblina do ceticismo
Como posso acreditar nos milagres e nas promessas?


Se já não acredito em mim mesmo...
... Mas, eu quero acreditar... Acredite-me!
O que será de mim no dia do Juízo Final?


Afinal, haverá realmente, um Juízo Final?
Todas essas dúvidas fazem de mim um pecador?
Fogo e enxofre serão as recompensas do meu mérito?


Queimar-me-ei pela eternidade?
Homem de pouca fé...
... Todos os outros homens acreditam que sou um condenado


Humilham-se diante das incertezas, temem o que está escrito
Recitam preces decoradas e participam de rituais em latim
Sei, mesmo sem comungar, que não posso tirar Deus de meu coração


Ele é uma realidade, assustadora realidade onipresente
Sempre busquei conhecimento
Sim, o conhecimento é tão valioso para mim


Não quero buscar crenças e nem superstições
Eu quero a sabedoria onipotente!
Mas, para que?


De que me valeria tanta sabedoria?
Se Deus me tocar e mostrar-me o seu rosto...
... Seria soberbo de minha parte gabar-me por isso!


Essa é a sabedoria que busco?
Quando tive medo e chorei clamando Ele não me apareceu
Não me confortou naquela vala enquanto o inimigo avançava


Meus companheiros morreram, eu permaneci vivo
O que eu tenho de diferente diante da morte?
O que sei é que não quero conviver com essas lembranças mórbidas


Eu vi a face da morte...
... Quero a face de Deus como alento!
Tudo e nada são a mesma coisa quando se está numa guerra ou resistindo a peste


Só o instinto de sobrevivência prevalece e o sobrenatural não nos protege
Sei que a maioria das pessoas não pensam na morte
Enquanto eu penso nela todas as noites


Até que chegará o inevitável dia...
... O grande dia do encontro
Ah, quando será esse dia?


Percebê-la-ei se aproximando?
Farei dela um ídolo e diante dela me prostrarei?
E, nesse momento verei a face de Deus?


*Baseado em: O Sétimo Selo (1956), de Ingmar Bergman.

domingo, março 27, 2011

Trechos da confissão da senhorita Lucy Westenra a Mina Murray










I


Entendi o seu desejo e permaneci imóvel, impassível
Como um transe hipnótico, senti-me seduzida
E notei aqueles olhos vermelhos na escuridão
Pensei estar dormindo, esperando regressar daquela estranha dimensão




II


Mas, não...
... Enquanto corria a esmo os lobos uivaram
Seus uivos vinham da floresta, tarde demais
Tão próxima; morcegos rodeavam-me cada vez mais




III


Minha pavorosa experiência perturba-me o sono
O Conde me tocou, beijou-me e me possuiu
Ainda sinto o gosto de sangue em minha boca
No jardim, durante a tempestade, tomou-me nos braços




VI


Tornei-me impura, minha carne maculou-se
Evite-me, nunca mais verás minha face no espelho!
Faça-me uma oração e saiba:
Manterei esta marca em meu pescoço, até que
Chegue o Dia do Juízo
E então, perecerei com uma estaca no coração








*Baseado na obra: “Drácula” de Bram Stoker, romance de 1897

*“Drácula” de Bram Stoker (1992) – Direção: Francis Ford Coppola

sábado, março 19, 2011

Escravos dos detalhes



"Eu me obriguei a me contradizer"

(Marcel Duchamp)



Há muita coisa a fazer e eu não me vendi ainda

Não foi como você imaginou ou pensou que seria

Os vazamentos estão por toda parte e a pilha de lixo aumenta

Dizer que não tentamos é muito cruel da sua parte



Sinto muito... Muito mesmo

E, lá fora, a pilha de lixo só aumenta...

... O relógio marca vinte e três

Mas, sabemos que não passa das dez



Estamos remando em círculos nesse bote salva-vidas

É como aprender outro idioma na completa escuridão, das palavras

E ela me lê, ela pode ler minhas rugas e provar o sal de minha pele

Ah não, ela me conhece demais agora e distingue facilmente as minhas pegadas



No tempo em que passamos à deriva lhe disse tudo sobre mim

Tudo, tudo mesmo, até sobre os desejos vencidos dentro da geladeira

Vamos combinar uma coisa, senhorita Rrose Selavy?

Hoje à noite, ninguém dorme e você terá tempo de me contar sobre sua vida



Sua partida, quando foi a sua chegada... Aonde nos encontramos?

Subiremos a escada que nos levará ao quarto do colecionador Marcel Duchamp

Para juntos catalogarmos as espécies de abutres empalhados

E isso, poderá levar um bom tempo...



Olho pela janela e percebo que não estamos sozinhos aqui

Todas as pessoas que você amou em forma de autorretratos

Estão lá fora ao relento, transtornados

Amor, é a vida! – Você diz sussurrando-me

Imagem trágica, tarde; porque todos eles estão espirrando?



E descubro que, na pilha de lixo, há muitos abutres empalhados apodrecidos



*A Marcel Duchamp: 28/07/1887 – 02/10/1968

*Título extraído da canção: “Leif Erikson” da banda nova-iorquina Interpol

*Rrose Selavy foi um pseudônimo do artista Marcel Duchamp

sábado, março 12, 2011

Não sou a única frequentadora do seu quarto



Qual de nós descansará depois da morte?
Você sabe o que significa estar excitada sobre a cama?
Nessa desordem instalada, você parece estar com muito sono


Não é meu dono e não sei qual o plano que traçou para mim
Tudo o que deixei para trás, volta à minha mente e me faz refletir
Descobrir que não sou a única frequentadora do seu quarto...


Concluir que, por aqui, nunca fui exclusividade sua
Apesar de estar sob sua mira e ser coagida a fazer
A fazer o que queria em todas as noites que me pedia


Eu sofria, quando a escuridão caía, e sabia
Sabia que naquela madrugada nenhuma estrela brilharia
Talvez eu consiga, de ti, fugir um dia


Mas, eu não quero fugir
Não sei de onde partiu esse pensamento
Então, num gesto de desespero, aperto minhas mãos contra meus ouvidos


É mais fácil esquecer a dor e esperar a noite chegar
E o silêncio dela poder suportar; o teu olhar me afasta da realidade
Aqui, nessa cidade, não há anjos que possam me servir de bússola


Só quando a lua brilhar novamente em Birmingham
E refletir a minha cara pústula, a salvação virá condolente
Sem maquiagens, minha glória é poder estar em seus braços definitivamente.



*A Debbie Harry (01/07/1945), 
cantora da banda norte-americana Blondie.

segunda-feira, março 07, 2011

Eu sou só um poeta ciumento






"As if a wedding vow
Ah, but I was so much older then
I'm younger than that now."
(Bob Dylan)




Nunca quis te ferir
Muito menos gostei de vê-la chorando
Mas eu estava completamente transtornado!

Eu sou um poeta ciumento
Acreditando somente
No que se passava pela minha mente...

Doente, sim é isso!
O ciúme me transformou num poeta doente
Por outro lado...
... Tente garota, vamos em frente!

Tente se livrar de mim
Rapidamente!
Busque outro tipo de artista
Mais decente do que eu!

Não equivalente
Eu sou só um poeta ciumento
Provavelmente...
Você não entende!

Tudo o que aconteceu recentemente
Tentei engolir minhas dores
Preventivamente
E a insegurança me traiu completamente!

Só para terminar, ouça brevemente
Um momento, um minuto para mim...
Ah... Nunca quis te ferir!
Eu sou só um poeta ciumento.




*A Bob Dylan 
(24/05/1941).

quinta-feira, março 03, 2011

Abra essa porta

“Oh, darling, please believe me, I'll never do you no harm.”
(The Beatles)



Não me importo se você não se importa
Somos estranhos e escolhemos o mesmo caminho
O nosso mundo caiu e as emoções se foram, mas...
... Volte, abra a porta e me terá sem termos que lutar



Há algo trágico e mágico em nossa relação?
Sempre nos separamos e continuamos abertos a reconciliação
Essa frágil tensão irá durar para sempre?
Talvez sim, talvez não...



O que nos aproxima é uma estranha obsessão
Disfarço, pois sei que estou oscilando
À margem de um colapso nada é lógico
E sei que serei abatida, estarei na mira



Precisa, quando novamente estiver voando
Contigo, há cinco anos minha cabeça brilha como jóia falsa
Dói, mas ainda consigo fazer uma canção de despedida
Para ficar sozinha e ir à sorveteria depois de tanto tempo, descalça



Nessa busca por algo gelado, nada é sensato em nosso próximo plano
Somos frágeis como recém-nascidos, de fome chorando
Fazemos mal, um ao outro e só queremos desculpas rápidas
É tudo uma questão de desejo, isso é o que nos mantém juntos



É fácil cometer erros estúpidos
Quando se conhece a fraqueza do outro
Tudo o que construímos se desmanchará em pó
Por dó ou piedade, dê-me um beijo, um só



Longo... Um único e longo beijo
Já não temos certeza do que queremos um do outro
Não consigo ver quem eu estou tentando ser
Mas, essa dor já está acostumada comigo



E nada, nada soa verdadeiro
Nem Oh! Darling daquele Abbey Road em vinil
Só o medo de ficar só por muito tempo
Fere minh’ alma como se irrompesse, nela, uma fissura sutil



Dolorosa e evidente, porém, difícil de detectar
Sem um exame minucioso ou uma análise aprofundada
Dos meus sonhos, muito mais elaborados do que deveriam ser
De tal maneira, que me convencem a ir para baixo sempre que voltam a acontecer.



*Abbey Road foi o 12° álbum dos Beatles 
lançado em 1969.