sexta-feira, dezembro 31, 2010

No último dia daquele ano








No último dia
Daquele ano
Em que
A guerra começou...






As irmãs de caridade passaram por aqui e se foram
Assim como vieram, se foram; antes
Nesta Vila dos Poemas”, fundada por Brecht em 1937
Lembro-me de uma fria manhã de inverno quando nos trouxeram conforto
Abriram os nossos olhos para os pecados do mundo
Sentaram-se ao nosso lado e ouviram nossas confissões
E, se foram...




Eu que, pensava em abandonar tudo
Abandonar minha família, abandonar minha profissão...
Não, eu não tinha amante e nem dívidas, muito menos hábitos mundanos
Não tinha religião, mas, ouvia músicas de minha região interiorana
Não tinha ciúmes, nem preguiça e pude acumular muita lenha para aquele inverno de incertezas
Cuidava de minha esposa e de meus filhos como um verdadeiro homem deve fazer, enquanto o céu era iluminado por rajadas
Ao deitar-me, algo me inquietava e só pensava em largar tudo
E, se foram...




Estava vazio como um túmulo a espera do corpo morto
Minha razão me dizia que pequei contra os que mais me amavam
E um temor no meu coração preenchia toda minh’ alma
A tristeza completava-me com suas incertezas...
Então as irmãs de caridade com suas doces palavras
Tocaram meu coração como o orvalho toca uma folha
Uma delas sentou-se ao meu lado e com um olhar sereno acalmou-me o semblante
E, se foram...




Cantarolando-me poemas de Leonard Cohen
Mostrou-me a verdade, a natureza dos humanos, o valor da vida...
... Perdido na neblina da dúvida fui resgatado, e eu pude sentir a centelha da felicidade se acendendo
Aos poucos, eliminando o medo de morte de minha carne
Sem insistência, mostrou-me a razão para continuar vivendo
Esperançoso, livre de jactâncias e altivez não se fez como uma amante
Doravante, irromperam-se as luzes de minha existência...
E, se foram...





Dissemos-lhes:
Fiquem conosco!

Enquanto a lua adormecia
Mas, as irmãs de caridade
Despediram-se
Dizendo-nos:
Ainda há muito que se cumprir
E, se foram...


*Ao mestre Leonard Cohen (21/09/1934), poeta e cantor e compositor canadense.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Sei que seu mundo está ruindo





Faz um calor infernal e tenho cãibras na perna esquerda
Ah, essas cãibras... Um dia me mato por causa delas
O bruxismo me corrói e estou encharcado de café e Fausto Wolff
Porque um sonho nunca é só um sonho, nem um livro é só um livro?
Porque tive que descobrir toda a verdade da vida naquele romance de 1978?





Mataram o cantor e chamaram um garçom...
E ele se aproxima da mesa, no colarinho uma borboleta preta
Espero que uma overdose de potássio venha aliviar todo esse desespero
Viro para ele e peço sem cerimônias: Uma cachaça e outra cerveja!
Nada é-nos eterno, muito menos as câimbras e tão pouco meu pedido efêmero





Só aquele olhar vazio do garçom nunca mais sairá dos meus pensamentos
Vou mergulhar nas profundezas e beijar a boca do meu medo
Sei que sou capaz, apesar da escuridão, irei tateando para encontrar
Encontrar o rosto do meu medo e apertar-lhe o pescoço
Isso é o que me traz esperança, alivia-me o desgosto





A próxima contração virá...
... Ainda mais forte que a anterior?
Quebrar-me-á os ossos?
Senhor... Ajude-me!
Precisas saber o meu nome, de onde eu vim, quais charutos aprecio?





Nada disso... Só preciso manter a calma
Uma calma interior de quem se aperfeiçoou em caçar borboletas
Sim, um caçador com alma de diretor de cinema...
... Mas não busco borboletas, estou fora de cena
Não sou como Kubrick, sou um apostador de roletas





Estou de olhos bem abertos
Dê-me um sedativo, esvazie a garrafa e depois me mande embora!
Sinto a presença do anjo e penso na morte
Quando percebo o anjo sei que ela está por perto
Então, vou celebrar a existência levantando o meu copo





Por quanto tempo poderei celebrar?
A chegada do verão, o aumento da temperatura, a qualidade da cerveja...
Nesse boteco de esquina que não vende tintos secos
A cerveja e Schopenhauer são minhas únicas soluções
Soluções que me fizeram descobrir que jogava o jogo de maneira equivocada





Besuntado em suor e precisando de um banho, celebro os limites da natureza
Pois, com certeza... Ah, pobre garçom de olhar vazio!
Noutro dia, o inverno irá recomeçar
Não me importa se é sincero ou está mentindo
Sei que seu mundo está ruindo
E, pelas fissuras a água irá penetrar
Em verdade lhe digo:
Quando estiver afogando, ainda sim estarei a lhe admirar.





*Homenagem a Fausto Wolff
pseudônimo de Faustin von Wolffenbüttel, 
Santo Ângelo, 08/07/1940 — 
Rio de Janeiro, 05/09/2008. 
Jornalista e um dos meus escritores preferidos.

domingo, dezembro 19, 2010

O que faríamos se tivéssemos o poder nas mãos?






Caminhando pela fria floresta, apenas sangue encontrei
Enquanto as tarântulas marrons saiam da neve, olhando-as me arrepiei
Então, sem me conter apertei o olho do cervo
Acredite em mim, apertei
Não há sensação mais inebriante do que apertar...
... Apertar até estourar o olho de um cervo domesticado






Agora, ao acordar sinto...
... Sinto que tenho um prego fincado na palma de minha mão esquerda
Ah meu Deus!
Porque na esquerda ele foi-me fincado?
Essa era a mão do ato onanista de um pobre solitário
Por este lado, durante muito tempo manipulei-me com ela






Não consigo imaginá-la presa a uma estaca
Mas, sei que é a punição necessária
Enquanto a neve cai na floresta e as tarântulas vão se emanando
Estou, resignadamente, aos céus, pagando
Pagando por todos os meus pecados carnais
E, delicadamente uma taça de tinto seco, com a direita saboreando






Vários corpos chegaram inertes ao IML
Frios, pude ouvir o telefone... Uma música tântrica soava
... Ninguém o atende e um corpo se vira
Não acredito que seja Bibi Andersson
Afinal, atrizes são imortais mesmo na Suécia
Ela fica em decúbito lateral, abre um livro e sorri sem os óculos






Somente por estar tão longe dele posso identificar o título
É “A Odisséia” traduzida para o latim
Assim, descobri tudo; era tão óbvio o que diziam sobre mim
Foram longos sete anos que passaram como uma semana
Fui Ulisses prisioneiro em sua ilha vulcânica
E, somente pelo silêncio acalmou-se minha alma mundana






Dinâmica, a indiferença é o seu melhor papel?
Vamos ligar o rádio e contemplar o pôr-do-sol?
Falar sobre o perdão e saborear o fígado frito de um leão?
Brincaremos de mímica e leremos as velhas cartas do Barão?
Escritas com carinho e pena à prometida daquele nobre casarão
Da praia ao sul, entre os penhascos da fronteira dinamarquesa






Porque devemos sonhar que somos uma certeza?
Apenas parecemos e isso basta-nos!
Sonhar aqui é-nos inútil, precisamos é estarmos atentos
Descobrir o que faríamos se tivéssemos o poder nas mãos
Ou então...
... Como cuidaríamos se tivéssemos animais de estimação?










*Bibi Andersson (11/11/1935).
Atriz sueca que estrelou filmes de Ingmar Bergman.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

Já não somos mais os mesmos





Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
De um porco ou talvez um suculento e enorme peixe
Mas, agora devo continuar...
Deixar que a loucura retorne de fato
Retorne e me faça querer matar
Nunca pensei que poderia concretizar esse ato
E, agora tenho certeza que posso fazê-lo



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Uns dos outros?
Talvez?
Por que não?
Eles são malucos e temem as cobras desta ilha
Nem sei se há cobras nessa ilha, conheço só a esquizofrenia
Mas, sei que precisamos de abrigos firmes para nos proteger ao fim do dia



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
O Sol está se pondo e não temos muito tempo
Terei, eu, tempo?
Eis que me vem à idéia:
“Nessa ilha deserta, tenho todo o tempo do mundo”
Ninguém nos achará... Pobre de mim
Pobres crianças, enfim... Estamos imundos!



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Andamos todos juntos, criamos um novo mundo
Um mundo de experiências empíricas e sentido abstrato
Sentido abstrato de sobrevivência de quem viveu apenas uma década
Agora, precisamos pegar um porco
Precisamos construir um abrigo
Precisamos dominar o fogo



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Pegar os frutos no alto, onde “os menores” não conseguem alcançar
Descobrir os maduros, por entre as folhagens
Entregá-los àquelas mãos outrora sensíveis e delicadas
Sujas, unhas quebradas, arranhadas nessa nova realidade
Depois que o avião caiu, tudo em nossas vidas novéis se transformou
Da noite para o dia, já não somos mais os mesmos nessa nova comunidade



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Entre trepadeiras e arbustos escorrem o nosso suor
Ouço as ondas quebrando, sinto um cheiro de jasmim
E um silêncio de sobrevivência que me incomoda tanto
Tanto quanto a irresponsabilidade dos que só querem brincar
Brincar na “piscina”, brincar no “jardim”
Espalhar-nos-emos pela ilha, em busca de que?



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Ainda não nos ajustamos ao novo ritmo
Sentimos falta do café da manhã, do almoço, do chá, dos bolinhos
Faz-me mais falta as refeições do que a mão de minha tia e o que ela me ensina
Obedecemos ao som da concha e nos alinhamos pronto às ordens!
Ela é o nosso elo com o mundo adulto da autoridade e da disciplina
Acho que ainda não tenho maturidade suficiente para entender isso



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Vamos ajoelhar na areia e ficar em paz
Parar de brincar e ficar olhando para o mar
Será que, em breve, um navio virá nos resgatar?
Nesse azul que machuca os olhos, os raios solares são como flechas
E os tabus, são como moscas
Moscas que rodeiam uma civilização em ruínas



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Desejamos a proteção dos pais, a proteção do policial fardado
Todos nós estamos despidos, envoltos em pequenos farrapos
Arranhados, doloridos, desidratados, enquanto as pedras rolam
Enquanto a chama apaga, enquanto o medo aumenta, nós a míngua
Aqui, as coisas querem se parecer outras
Como um camaleão num tronco, preparando, ao ataque, sua língua



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Faremos um relógio de sol!
Que ótima idéia!
Ótima idéia para nada
Devemos fazer coisas para que nos encontrem
Calem-se, calem-se todos!
Vocês deixaram a maldita fogueira apagar!



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Matamos um porco
Rastejamos... Fizemos um círculo...
Acertamos e caímos em cima
Enquanto, Jack nos orientava:
Matem o porco...
... Cortem-lhe a garganta e lhe tirem o sangue!



Nós queremos carne
Desejamos muito comer a carne
Calem-se, calem-se e comam o porco
Que eu mesmo matei e preparei
Como o cheiro das flores, no crepúsculo, se espalha ao redor
Vamos fazer uma reunião, nos preparar para o pior
Vocês deixaram a fogueira apagar... Dizia-nos Ralph
Enquanto eu pintava meu rosto e visualizava, ao longe, um suposto navio



Vocês querem a carne
Desejam muito comer a carne
Em democracia o líder foi escolhido, ouçam-no tocar a concha
Mas, o fascismo impõe o medo e quer nos controlar
Façam o que ele manda, é melhor estarmos ao seu lado
Há uma revelação mística: “O mal está em nossos corações”
Não conhecemos a serpente, mas a tememos
Tememos, pois, temos razão e habilidade para vê-la com clareza



Vocês querem a carne
Desejam muito comer a carne
Descer a montanha fugir do fogo, se alimentar
Dê-me sua lente, Porquinho, são convexas e o fogo irá propagar
Já não há mais amarras que nos ligam à civilização
Quando a vara penetrar em suas entranhas, não grite!
Não grite, pois ele vai voltar
Sim, o Senhor das moscas não tardará a chegar.



*Baseado em: "O Senhor das moscas" (1954).
de Willian Golding (19/09/1911 - 19/06/1993).

sábado, dezembro 11, 2010

Quem vai lamber os selos?



Encha minha taça
Semeie flores
Vamos juntos
Estilhaçar o teto
Esquecer rancores
Assim, ganharemos o Paraíso


E lá... Entre os mortos, teremos regozijo
Combateremos um novo exército
Duma nova base levantaremos
Marcharemos contra os amantes
Sob as ordens do bodegueiro
Derrotá-los-emos meus caros companheiros!


Depois da batalha final, perderemos o juízo
Instrumentos de sopro e cordas tocaremos
Na dança marcial nos perderemos
E todos baterão palmas e cantarão
Uma canção de triunfo, uma canção de vitória
Alguns nascem para lamber selos
Outros para conquistas, honras e glórias.




*Baseado em citações de Hafiz e Jack Kerouak.

quarta-feira, dezembro 08, 2010

Ouçam essa criança









Que grandiosa criança que possui tão bela cor de areia
Que dança faminta e sabe o que quer
Que bate os calcanhares e levanta poeira
Que salva a raça humana por um motivo qualquer.




Que veio de um reino distante e está a beira
Que tem a pele dourada e fresca, tão natural
Que não se parece nem um pouco conosco
Que revira os olhos e fala com sotaque sensual.




Que dança, cai de joelhos e se levanta sorrindo
Que está sempre à procura de algo, nunca fica estática
Que, sem responsabilidade, brinca e vai se divertindo
Que fez lembrar-me daquela caçada nas savanas da África.




Nunca haverá alguém como você
Nunca ninguém fará as coisas que você faz
Nunca soube o que se passava em sua mente
Nunca mais estaremos juntos novamente.



*Dedicado a James Douglas Morrison
(08/12/1943 – 03/07/1971).
*Baseado em: “Wild Child”, canção do The Doors.


sábado, dezembro 04, 2010

Canto para Neruda



"Um quadro só vive para quem o olha."
(P.Neruda.)




... E a amante velou o poeta que
Morreu lentamente por nunca evitar as paixões
Um dia sua voz renascerá?
O seu maior castigo foi ter vivido sem dores
Em pensar que nunca morreria de novo
Desse refúgio não deixou pistas, apenas páginas escritas


Uma prece fez arder meu coração estrelado
Assim me foi ensinado...
... Ao chegar, toque o sino!
Toque o sino e todos saberão
Que um dia sua voz renascerá numa canção
Numa canção de amor prudente, de amor ao povo, de amor à nação


Então, abriste mão da primavera para continuar contemplando o Pacífico
Assim me ensinou: Ao chegar, toque o sino!
Toque o sino e todos saberão
Que o retorno do mar aconteceu outra vez, sem agruras
E tantas outras vezes, como quem se transforma em escravo do hábito, por repetir todos os dias os mesmos trajetos e gestos específicos
Imaginava, consigo mesmo, que só arderia nas alturas?


A esperança lhe abandonou, os versos não
Depois de partir é que percebi que navegava para não deixar rastros
Um Astro? Jamais lhe pouparei o meu olhar, nunca mais permanecerei inerte
Não abandonarei o chapéu que me deste
Comerei o peixe que me servirem, antes...
Deixarei para a posteridade mais um poema sobre os Andes.



*A Pablo Neruda 
(12/10/1904 — 23/09/1973.)

quarta-feira, dezembro 01, 2010

Fogo e artifício








Crianças... Ouçam crianças!
A voz dos abutres... Vejam!
A cor dos répteis... Sintam!
O cheiro da alcatéia... Sofram!
A indiferença dos humanos... Busquem!
O amor celestial... Morram!



As mulheres da outra margem dizem-lhes:
Antes de morrer... Vivam!
Vivam conosco e esqueçam as mazelas da vida
A noite começa... Venham!
Venham agora, e vivamos todos nessa floresta urbana
Repleta de pântanos, crocodilos e abutres!



Juntos, não tornaremos comida dessas almas mundanas
Nossa união fortalece-nos, como gravetos unidos
Separados somos frágeis... Quebrar-nos-ão!
Facilmente, nos quebrarão na primeira investida
Isso foi-nos dito e repetido
Se, não cumprirmos o plano, nenhuma recompensa celeste nos servirá



Afinal, ao acordarmos, hoje
Por preguiça, desperdiçamos toda a manhã
Não tocou em nossa pele, o calor dos raios solares
Não beijamos o vento, não vencemos a gravidade
Passamos, em vigília, a noite toda atrás da porta
A noite toda... E isso tem um preço físico



Ah, ensolarada vaidade, ensolarada tarde
Até que um dia, far-se-á nublada nossa alvorada
E, acordaremos mais tarde ainda
Tenho certeza que acordaremos, apesar de, tarde
O Sol, entre nuvens não abrirá a passagem
As portas também não se abrirão



Tenho dúvidas... Abri-las-emos?
Do lado de dentro, há possibilidade de fortalecer o amor?
Amar, e amar em dois tempos?
Distintos... Amar como antes?
Como nunca antes?
Ou simplesmente amar...




*Conhece a lenda de Prometheu?