sexta-feira, abril 30, 2010

No dia de minha execução





Venham, venham todos, aproximem-se
Estou de partida e me sinto pronto
Purifiquei-me de todo mal que há nesse mundo
E, percebi melhor o céu e o que ele significa
A respiração ofegante e o vento intenso deixam-me um pouco tonto


Acabei de esvaziar-me de toda e qualquer esperança
De mamãe, vêm-me a saudade e algumas lembranças
Já no fim da vida, arranjara um noivo que a visitava pela janela
Há tempos não pensava nela, nem...
... Naquele asilo em que vidas se apagavam como velas


Com reverência, percebi a indiferença dos espectadores
Muitas caras e feições; são hipócritas e agem como atores
Se parecem demais comigo e sinto-me menos só nesse holocausto
Eu estou exausto, enquanto eles aguardam serenos pela execução
E, então, para a consumação do ato ser plena e convincente
Verdadeiramente, quero que venham muitos gritos de ódio da multidão aqui presente.




*Baseado em: “O Estrangeiro”, 
de Albert Camus
(07/11/1913 - 04/01/1960).

terça-feira, abril 27, 2010

Antes de dormir, confira as portas





Pesada és
Noite solitária
Nos últimos ermos anos
Franze as sobrancelhas
Do caído anjo


Debulhado em lágrimas
No teatro, labora
Para ver todas as peças
Confiando poder
Tentar entender
Medos...
Lembranças
Aflições do ser


Enquanto tocam
... Os músicos
Reconheço esses acordes
Afinações dos meus temores
Nessas plagas
Cultiva-se superstição
E, desde a Guerra Civil
Tiro proveito da situação


Estou na suposta Cruzada
Trabalhando tortura e eliminação
Perdão dos pecados, benção
Piedade religiosa, purificação
Que doçura de expressão!
No leste do país
Elimino a bruxaria
Enquanto nosso exército
Faminto, desesperado, sedento
Faz diligências para comer a contento


E o soldado?
Ah, esse pássaro que construiu seu ninho
Às margens ciliares do entorno
Só pensava em Sarah
Em 1645
No reinado de Rei Carlos
Abandonou seu posto
E, de encontro veio, a desgosto
Face a face
Era iminente
Oh, minha querida
Nunca se esqueça de conferir
Todas as portas
Antes de dormir!


*Baseado em conto de Edgar Allan Poe 
(19/01/1809 — 07/10/1849). 
Escritor, poeta, crítico literário e editor.

domingo, abril 25, 2010

O beijo do fantasma





Descrevo-o pela metade
Porém, sinto-o por inteiro
O forasteiro tem uma voz tão jovial
E sempre a usa para me seduzir


Ao deitar-me, apago a luz
Só assim o vejo refletir
Percebo tua presença fria
Somente à noite, nunca durante o dia


Encontra-me para um propósito que não entendo bem
Nas profundezas da escuridão de meu quarto
Aproxima-se, paralisa-me, faze-me refém
Toca o meu rosto, como um beijo do além


Não posso escapar, toda a noite acontece um ritual
Apele para o seduzido, peça socorro ou libertação
Preciso de garantias, temo por algo fatal
Apareça sob a réstia e revele a minha sina


Corpo temporário que agora luta para não ser
A todo custo, preso nesse mundo, tenta se manter
O que temos de bom?
A que lhe sirvo, qual é o meu dom?


Pelo desconhecido, estou atraído
Conhecia minhas fraquezas e usaste-as contra mim
Porque, qual o motivo das visitas constantes?
Mostre-me Senhor, porque tinha que ser assim?


Seus restos apodrecem em alguma tumba
E seu espectro vem me acariciar
Sobrenatural acalanto, estranho gesto de ninar
Aqui estou lhe aguardando
No único lugar que tinha para descansar.

sábado, abril 24, 2010

Triste azul


Não preciso de ninguém além
De ti, acompanhada submetendo-se às tentações
E os nossos momentos mais felizes
Remetem-nos a partidas e desolações


O espírito da ludicidade nos penetrou trazendo
Sem pedirmos, um regozijo efêmero de uma fidelidade dúbia
E preteridos, aprendemos a manusear os lápis coloridos
Desenhamos, com eles, nossas personalidades e nossos corpos feridos


Focamos num relacionamento de júbilo frágil
Façamos um brinde, um brinde em silêncio com os piores
Tintos secos, solenemente, sabemos que são diferentes
Mas ainda sou do tipo dos que esperam coisas melhores


Seus tons azulados, suas covas no rosto lânguido
Mergulhado em sombras, sem ornamentos
Emoldurado pela confissão, verídica e duvidosa
E o resultado dessa colisão, acabou-se em rescisão
Numa desagradável ruptura de beleza dolorosa.





*A Joni Mitchell, canadense, nascida em 7 de novembro de 1943.
*Em 1971, a cantora lançou o álbum confessional “Blue” que vendeu mais de um milhão de cópias pelo mundo.
*Ao conteúdo desse álbum, presto minha homenagem.

sexta-feira, abril 23, 2010

Era ela






Agora me lembro bem
Como se fosse ontem...
Caminhávamos, sem pudor, pela sarjeta
Reproduzíamos a realidade com uma objetividade perfeita




Víamos, do ‘Templo do Amor’
No andar de baixo um jardim sem flor
Nele havia luz, havia chama e sombras
Visões, ilusões, tentações e um frio suor




E lá, somente lá
O poeta fantasma beijava-a
Na alcova, Guidi o esperava e
Prontamente se deitava, o aceitava




Em namoro, feito um compromisso que firmara
Buscava algo mais, algo que ainda não encontrara
O temor no amor a perturbava
Hesitante, nutria dúvidas e não se fixava
O doutor era forte, quase nada necessitava
Mas, quando se encontravam era ela quem o medicava.

terça-feira, abril 20, 2010

Técnicas para destruir um vampiro





Vá com calma, não tenha medo
Vou lhe ensinar o procedimento dos livros
E, lembre-se:
Não se mata um morto
Mas, pode-se destruí-lo!




Primeiro:
Não deixe que volte para sua alcova
E prenda-o sob a luz do sol
Exponha-o ao calor
E verás o espetáculo de horror




Ou então:
Lance-o às águas correntes
Elas irão derretê-lo
Como uma faca que atravessa
Um pote de manteiga quente




Por fim:
Tente expô-lo a cruz
E, seu corpo frio, imortal
Queimar-se-á; e então...
Ao vento, suas cinzas se espalharão




Como vê,
Vampiros não são invulneráveis, inatacáveis nem inatingíveis
Mas, como capturar um gato, exige estratégia
Agarrá-lo e estrangulá-lo não é tarefa das mais agradáveis
Vamos em frente, no caminho, os pormenores lhe conto, pois já é chegada a hora do confronto.



*Baseado em ‘Drácula’ de Bram Stoker (1897).
*Homenagem a Peter Cushing, interprete do 
Professor Abraham Van Helsing na série de filmes 
"Drácula" da Hammer Films, lançados entre 1958 a 1974.

sábado, abril 17, 2010

Confie em mim e não se arrependa


Não se preocupe
Oh, linda Cristinne
Confie em mim
Não quero roubá-la
Deste mundo pagão...

Porque a superstição
Faz parte deste lugar?
Lembre-se do 4º Mandamento:
Não se esqueças de, o nome
Do teu pai e tua mãe ser capaz de honrar

Porque as garotas
Adoram parar o que estão fazendo?
Acalme-se Anton...
Ouça o que lhe estou dizendo:
Há coisas que, mesmo os homens letrados não compreendem
E, pelo ceticismo serão abatidos, mas não se arrependem...

Nunca, nunca se arrependem...
Anton, diga-me:
Somente a decapitação
Ou uma estaca no coração?
Promove, na alma da vítima, uma restauração?
Traz ao morto-vivo o sacrificante perdão?




*Baseado na novela gótica: 
Carmilla (1872) do irlandês 
Joseph Thomas Sheridan Le Fanu
(28/08/1814 – 07/02/1873).

terça-feira, abril 13, 2010

O funeral da camponesa romena




Venha comigo, caminhemos pelo bosque
Vê, carrego o martelo e a estaca
Não podemos correr o risco
Tenha calma Mrs. Cane, eu insisto




Sabemos que é
Para o nosso bem
Pois, já não é mais a mesma
O que jaz tem outra forma
Não aqui, mas no além




Nas trevas, se revelará plena
Não aos nossos olhos
Com enorme desgosto
Enxugue as lágrimas, aproxime-se
Veja as marcas em seu frio pescoço




Compreende agora?
Precisa entender-me
Confiar no que lhe digo
Vamos consumar esse fato
Eu lamento, mas deve concordar comigo!




E tenho-lhe dito:
Sou o padre que fará
Com ou sem o seu consentimento
É minha filha, padre Sandor!
Por favor, enterre-a sem a estaca no coração




Leve-a para o solo sagrado dos mortos
E faça-lhe uma oração
Você teme o que não vê, minha cara senhora
É preciso fazê-lo
Por doutrina e não por superstição



Vamos, é chegada a hora da consumação...







*Baseado em Drácula de Bram Stoker (1897).
*Texto adaptado do filme: 
"Drácula, o Príncipe da Trevas" 
Direção: Terence Fisher.

sábado, abril 10, 2010

O maravilhoso e estranho sonho de Alice


Aqui estou estudando, que tolice
Sou Alice, deitada em meu jardim
Debaixo de uma grande sombra
Inebriada pelo cheiro de jasmim


Lendo sem compreender:
“Os Princípios do Cálculo Lógico”
Aberto na página cinquenta
Percebo uma cena que me deixa desatenta


Parecia-me, ao longe, um coelho branco
Mas tinha casaco, relógio e sabia as horas
Elegantemente trajado para o ritual britânico
“Estou atrasado, estou atrasado”; corria e berrava em pânico


Então, segui uma fumaça e me atinei com o que vi
Era uma lagarta azul ou talvez uma centopéia
Com o seu ‘narguilé’ , fatiando um baralho, induzindo a platéia
Dando as cartas e indagando-me depois de um trago:


Quem é você, jovem plebéia?
Que pena, eu já não sei mais responder, estão confusas as idéias
Acho que não sou mais eu
Estou minúscula e não me lembro do que aconteceu


Não entendi, disse-me o artrópode
Era enorme e da classe dos quilópodes
Dirigindo-se a mim, com os olhos vermelhos acrescentou:
Vou lhe contar tudo o que sei sobre esse jardim; e bafejou...


Curvando-se para frente, me logrou veemente:
Eu não sei nada sobre o jardim, estou confuso, isso sim
Mas, de uma coisa não me esqueço, vou lhe falar
Se o cogumelo comer, seu tamanho irá modificar


A cada mordida, perceberá
Poderá encolher e se destrambelhar
Ou então crescer demais e gigantesca, tropeçar
Depois disto, foi-se embora sorridente a rastejar


...


Duquesa traga-me a pimenta!
Mais pimenta, mais pimenta, mais pimenta!
Cale-se! Desapareça do meu caminho!
Não vê que tento, em vão
Adormecer meu bebezinho?
O gato da casa observava tudo...
Parecia demente, mas sabia dialogar
Era charmoso, e o meu destino iria profetizar


...


Alice, o chapeleiro muito doido mora para lá
E, nesse momento, deve estar tomando seu chá
A lebre maluca habita do outro lado
Ninguém poderá lhe ajudar nesse lugar malfadado


E avisando-me isso, fez-se desintegrado
Para que lado fica o meu jardim? Deste, ou daquele lado?
Terei eu mesma que descobrir o meu rumo!
Porque só respiro enquanto durmo?


De novo o gato disse-me por sua enorme boca:
Seja louca, nunca curiosa!
Sorrateiro, cantando e balançando sua cauda, deixou-me nervosa:
As gatas que morrem são as que querem saber os segredos alheios


Que horas são nesse lugar, porque não giram os ponteiros?
Porque esse coelho não para de falar?
Não podes deter a ação do tempo...
Só poderá matá-lo e nunca mais sair desse lugar


Aqui há muitas dimensões
E o meu corpo e membros já perderam as originais proporções
Vamos, novamente é a hora do chá
Sente-se e confie-nos; nossos melhores ensejos iremos lhe ofertar


...

Essas cartas de baralho são estranhas e
Sobre escadas, tingem de vermelho as enormes castanhas
Pintam as folhas, as pedras, os peixes, as floradas, insetos e as aranhas
São as ordens da Rainha: Cortar-lhes a cabeça e todas as entranhas


Eu sou o Rei e lhe convido, jovem forasteira
Escolha seu flamingo, eles deixam o jogo mais interessante
Chegaste confiante e agora, aproveite meu convite
Nesse instante, prepare-se para uma partida de Cricket delirante


...


Quanta desobediência para uma jovem menina!
Abandonaste o jogo e insultaste nossa rainha!
Raptaste o bebê, comeste a torta e destruíste a chaminé
Por fim, quase me esmagou com seu enorme pé


Veredicto em contrafé:
Cortem sua cabeça!
Cortem sua cabeça!
Cortem sua cabeça!


Calem-se!
Já está decidido!
Abrirei meus olhos e despertarei
Sei que estou delirando
Peguei no sono e acabei sonhando
Fecho meu livro e as fórmulas vou recapitulando
É melhor voltar para casa
Pois o dia está terminando.




*Baseado em: 
“Alice no país das maravilhas”, ficção de Lewis Caroll
(27/01/1832 - 14/01/1898).

sexta-feira, abril 09, 2010

R.I.P. Duck (a Malcolm McLaren)



Articulador e criativo
Mentor intelectual dos Sex Pistols
Trouxeste, de Nova York, uma estética, um conceito
Minimalismo puro num disco de rock perfeito


Um, dois, três acordes: “Punk não é anarquia”
Carregando a sensação de que sempre foi traído pela “Britânica Monarquia”
Autodestruição; perderam o controle de um monstro que crescia
Levava-se muito à sério e se permitia ironizar em toda situação


Antropofagia para ouvir: “Buffalo Gals” e som dos últimos pregos na tampa do caixão
Atacava os tecidos de proteção da maioria dos órgãos internos e nos ‘Jeans’ só nos vendia a corrosão
Fostes predador, roubava o que podia
Além de idéias, fotografias, conceitos, instrumentos e ideologias


Desenvolveste a liberdade criativa autofágica; democracia em catarse
Purificava espectadores num efeito intencional
Em forma de representação dramática contabilizando palcos destruídos
Conduzindo os hipnotizados pela tragédia clássica do urbanismo juvenil
Por descargas emocionais e lembranças traumáticas das capas dos discos de vinil


Vivienne Westwood, comparsa, companheira e estilista
Let It Rock & Sex, projetos mútuos e alguns furtos
Scratchs e World Music, mainstream, glamour e insultos
‘New York Dolls’, por um diletante anarquista
As táticas de marketing foram sua estratégia e saída
Choque e controvérsia, sucesso e polêmica na mesma medida


Mas essa idéia comovente
De vê-lo agonizante
É-me muito triste
A mesotelioma é resistente
E ainda insiste!




*Homenagem a Malcolm McLaren 
(22/01/1946 - 08/04/2010).

*Figura pública controversa , Malcolm, em 2000, especulou que se candidataria a prefeitura de Londres. 
Sua plataforma de governo incluiria a legalização da prostituição e a venda de álcool em livrarias.

R.I.P. Malcolm.

quinta-feira, abril 08, 2010

Na tripulação dos condenados, clamo por um bote salva-vidas




Diante da contundência do juiz, recuei
Um magistrado perfeito, talvez eu não temesse
Mas, nesse caso, sem prazo
O maior subjuga o menor


Seus olhos sabem que pouco estudei
Se aqui estou, perante a sociedade falhei
Na perfeita sentença da natureza
O céu recua-se, bem sei
Admiro seu martelo, sua destreza, seu veredicto e equilíbrio


O paradoxo da vida:
Quanto mais real, mais mística
Vivo num eterno processo
Onde os levantamentos de hipóteses devem ser provados
Imerso na subversão de carimbos, folhas, fatos e amostras


Processos protocolados, recolhidos e inspecionados
Não fiz o ato?
Até o final da investigação...
Não me sentia imputado
Deixei pela metade minhas intenções, um drink inacabado, verberações


Mas fui acusado, formalmente citado
Diante de tanta umidade e frieza do magistrado
No ato da defesa, o promotor em destreza
Senti náusea, como se estivesse gripado
Já não posso com papéis, carpetes e ar-condicionado


Perante minha própria fragilidade, consternado
Não me absolveram, ao contrário
Confirmaram-se as acusações, sem apelo e nem zelo
Algemado, pelas correntes do Estado, fui levado
Hoje, sou mais um encarcerado na tripulação dos condenados.