terça-feira, junho 02, 2009

O Dia Que Não Passou










Em frente ao computador, aquele homem não estava com a mínima vontade de expressar coisa alguma. Nem bebericar o café que há tempos esfriara.
Queria ir ao trabalho, vender suas cartas de crédito e seus consórcios habituais de carros, motos e imóveis.
Era alto, magro, pele pálida e lábios arroxeados como se acabasse de beber algum vinho tinto barato.
Corretor de consórcios e imóveis com registro no sindicato e no conselho regional. Mas, naquele dia não saiu de casa, ou melhor, não pode faze-lo como cotidianamente fazia.
Estava ilhado em seu próprio lar.
Nenhum contato com o mundo lá fora. Tudo estava hibernado e ocioso como uma paisagem lunar.
O homem tedioso olhava através de seu monitor 17’ enquanto navegava pelo orkut em busca de comunidades exóticas e obcenas.
Pela TV o repórter de plantão dava suas mais recentes informações e dizia que mais um ônibus fora incendiado na zona sul.
As autoridades municipais e estaduais das secretarias de segurança e transportes estavam reunidas na busca de soluções imediatas, mas pediam desesperados que a população mantivesse a calma.
O homem que labutava pelos labirintos urbanos, necessitado de transporte coletivo, ônibus e metrô, estava anestesiado nas profundezas de seu quarto-escritório.
Internet e TV ligadas simultaneamente, retinas lacrimejando pelos efeitos elétricos da tela do computador e lá ia o ser a retornar a sua geladeira duplex branca para mais uma averiguação de rotina.
Fechando-a pegou uma mexerica que estava dentro da fruteira inox sobre a mesa de madeira cor tabaco. Descascou-a e inebriou-se pelo cheiro do sumo que exalava daquela fruta amarela.
Um dia nada comum, nem mesmo aos domingos aquele magro e alto homem ficava em casa matando os ponteiros de seu relógio que insistia em girar segundo a segundo como uma ciranda interminável.
Mas ele estava lá, refém de luxo no aconchego de seu apartamento financiado pelo feirão da Caixa e com cerca de mais de dezoito anos para quita-lo.
Era feliz, escrevia poesias nas horas de inspiração e estava aprendendo a tocar violão com uma professora negra dos olhos ainda mais negros que, quando o olhava lhe trazia bem estar e satisfação.
A professora, antes de tudo, era, para ele, um afrodisíaco afro-tupiniquim exótico.Pensou em pedi-la em namoro, mas relutou achando ser antiético de sua parte assediar alguém que estava ganhando seu pão de maneira artisticamente singela.
Voltou à geladeira mais uma vez e encontrou um danete gelado que pacientemente foi devorado utilizando-se de uma colherinha de café.
Esse homem adorava saborear danetes com colherinhas de café.
No Orkut encontrou a comunidade Eu Amo Os Anos 80, uma espécie de comunidade de música saudosista para aquelas pessoas que foram jovens nos idos anos 80.
Como ele mesmo dizia e digitava para amigos:
- Adoro aquela bateria sequinha, polida, o contra-baixo potente pontuando a canção e contrapondo-se a guitarra econômica e aquelas vozes melódicas e chorosas de Morrissey, Robert Smith, Peter Murphy e Ian McCullock.No momento em que finalizava seu danete ouvia concentradamente o álbum "Desintegration" do The Cure e lembrava nitidamente no dia em que adquiriu o disco vinil logo após seu lançamento. Hoje, com uma mídia em MP3 com todos os discos do The Cure comprada a oito reais de um camelô na praça dos Correios ele relembrava saudosamente como era comprar um vinil novo. Inefável, pensava.
Lembrou, ainda, sem saber porquê, de seu amigo, Mario Borges, jornalista do Diário: "A Cidade Em Chamas", que no mesmo instante, via pela internet e construia sua coluna do dia seguinte um texto às autoridades competentes na qual dizia raivosamente:
“Expresso de forma enfática todo meu desagravo em detrimento de atitudes nefastas como as que vem ocorrendo de forma sistemática com toda a população honesta e trabalhadora que é justamente quem mais sofre com a ausência de providencias eficazes por parte dos órgãos competentes no intuito de inibir e coibir manifestações marginais. É de nossa responsabilidade, juntamente com a união e o cooperativismo de toda a sociedade civil, reinvidicar soluções urgentes para podermos juntos, pleitear nosso Estado de Direito justo e trabalhando em prol do operário, do profissional liberal, do funcionário público e de todos os funcionário privados que laboram em empresas sérias e geram o crescimento de nossa nação brasileira”.
Esse sentimento de justiça não mais gerava alterações metabólicas naquele homem cansado do cotidiano, cansado de sua vida impar, de solidão nas noites serenas e de observações vagas nos balcões de bares suburbanos.
Resignado?
Talvez pretendesse fazer algo inútil ou gerar cinetismo naquele momento tranquilamente desesperador. Mas a iminência ficava no pensamento.
Voltou à geladeira, olhou-a pela última vez, foi ao quarto minúsculo, abriu sua escrivaninha e retirou um objeto negro e gélido. Única herança do pai.
Após um copo de água gelada com sal de frutas para amenizar sua companheira gastrite, a vizinha de cima, quinto andar de um prédio classe baixa decadente na Avenida Robert Kennedy, ouviu um disparo e chamou a polícia.

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